A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) iniciou, nesta terça-feira (8), o julgamento do recurso especial contra acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que declarou prescrita a ação de indenização por danos morais ajuizada pela família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, torturado e morto nas dependências do Doi-Codi em 1971, durante a ditadura militar. O processo teve como réu, inicialmente, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandava a unidade à época. Ele morreu em 2015, tendo sido sucedido no processo por seus herdeiros.
Em seu voto, o relator, ministro Marco Buzzi, deu provimento ao recurso, por considerar imprescritíveis as ações indenizatórias ajuizadas em razão de atos contra os direitos fundamentais praticados pelo Estado brasileiro e por seus agentes durante o período ditatorial. A ministra Isabel Gallotti abriu divergência, votando por manter o acórdão do TJSP. Na sequência, o ministro Buzzi pediu vista regimental. O julgamento deve ser retomado na próxima terça-feira (15).
De acordo com o processo, agentes do regime relataram que, após a prisão, Luiz Eduardo Merlino teria se suicidado. Porém, testemunhas confirmaram que ele foi submetido a espancamentos no Doi-Codi – ora por ordem do coronel Ustra, ora com a participação direta dele –, em sucessivos episódios de tortura que levaram o preso político à morte.
A ação de indenização foi ajuizada pela companheira e pela irmã do jornalista em 2010, quando Ustra ainda era vivo. Em primeira instância, o coronel foi condenado a pagar indenização por danos morais de R$ 50 mil a cada autora da ação, mas o TJSP entendeu que o processo foi iniciado quando já havia ocorrido a prescrição.
O ministro Marco Buzzi destacou que a Primeira Seção do STJ editou a Súmula 647, segundo a qual são imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política praticados com violação de direitos fundamentais durante o regime militar.
Segundo o relator, o caráter imprescritível engloba não apenas as ações ajuizadas contra o Estado, mas também aquelas em que figura como réu o agente público envolvido nos atos de violência.
"Vale ainda ressaltar que, neste caso, trata-se de demanda ajuizada diretamente em face da pessoa natural a quem são imputados os atos de tortura; no entanto, discussões a respeito de eventual ilegitimidade passiva não foram ventiladas nas contrarrazões ao recurso especial, tampouco foram objeto de análise pelo tribunal a quo no acórdão recorrido, razão pela qual não houve o devido prequestionamento apto a permitir a análise da matéria no âmbito deste tribunal superior", ponderou o ministro.
Para Marco Buzzi, a qualificação dos atos supostamente praticados por Brilhante Ustra como ilícitos contra a humanidade impede que seja reconhecida a prescrição no caso, tendo em vista as "gravíssimas violações" que teriam sido cometidas por ele contra os direitos fundamentais do preso político.
Segundo o ministro, em episódios de ofensa frontal a direitos fundamentais – como no caso de tortura e morte durante a ditadura militar –, a pretensão de sua reparação deve sempre ser considerada imprescritível, em razão dos princípios fixados pela Constituição de 1988 e dos tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil nas últimas décadas.
Buzzi lembrou que a Lei 6.683/1979 concedeu anistia criminal aos envolvidos em atos ilícitos na ditadura militar, mas não estendeu o benefício aos pedidos indenizatórios nem impediu que esses agentes fossem processados e responsabilizados "por toda a ferocidade das torturas cometidas, dos desaparecimentos de pessoas e das lesões gravíssimas praticadas".
"Tratando-se de ilícito contra a humanidade, em razão de tortura praticada contra companheiro e irmão das autoras em contexto de violação sistematizada dos direitos civis, a proteção judicial deve revestir-se de atemporalidade, sendo a conduta do agente passível de investigação, punição e reparação a qualquer momento da história humana", concluiu o relator.
Com esse entendimento, Buzzi votou para cassar o acórdão do TJSP e devolver os autos ao segundo grau, para que a corte paulista julgue novamente o caso, afastada a prescrição.
Em seu voto divergente, a ministra Isabel Gallotti afirmou que a Súmula 697 do STJ diz respeito a ações indenizatórias que discutem a responsabilidade objetiva do Estado, de forma que a imprescritibilidade, segundo ela, não atingiria processos que tenham como réu apenas o agente público.
Para a ministra, embora a Lei de Anistia não tenha impedido a responsabilização civil de agentes públicos que atuaram na ditadura, a sua promulgação representou um pacto social de superação daquele momento político e de pacificação da sociedade brasileira.
"No âmbito do direito privado, em ação em que se deduz pedido condenatório, a pretensão de imprescritibilidade atenta contra a paz social, diversamente do que ocorre no âmbito do direito público", afirmou Gallotti, ao lembrar que a ação foi ajuizada quase 40 anos depois da morte do jornalista.