A pandemia que se arrasta há 40 anos e a luta pelos direitos dos portadores de HIV
Em 1º de dezembro é celebrado o Dia Mundial de Combate à Aids, que durante os anos 1980 e 1990 se tornou uma das doenças mais assustadoras em todo o planeta – ameaça da qual o mundo ainda não se livrou. O Tribunal da Cidadania – cuja fachada estará iluminada no próximo mês em apoio à campanha Dezembro Vermelho, de incentivo à prevenção da Aids – teve papel essencial para garantir os direitos das vítimas dessa enfermidade. Em 1981 – enquanto Pelé era eleito o "Atleta do Século", o atentado do Riocentro abalava a abertura política e as rádios não paravam de tocar Emoções, o novo sucesso de Roberto Carlos –, casos de uma estranha doença começaram a ser diagnosticados, principalmente entre a população homossexual de grandes cidades norte-americanas. Dois anos depois, o cientista Luc Montagnier, do Instituto Pasteur de Paris, isolou pela primeira vez o vírus HIV, o causador da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (Sida – ou, em inglês, Aids). A doença – que, logo se viu, afetava também os heterossexuais – espalhou-se rapidamente pelo planeta, recebendo o título de Mal do Século. Aids ainda é uma realidade grave em todo o mundoO infectologista e pesquisador Bruno Mariano, do Rio de Janeiro, afirma que hoje há cerca de 40 milhões de pessoas infectadas no mundo. Segundo o médico, o HIV afeta o sistema imunológico e permite o avanço de doenças oportunistas, como tuberculose, meningite criptocócica e sarcoma de Kaposi. Como a Covid-19, a Aids é uma zoonose, ou seja, uma doença originada em animais, provavelmente em macacos da África nas décadas anteriores a 1980. O vírus está presente em secreções corporais (sangue ou sêmen, por exemplo) e pode ser transmitido por seringas, sexo sem uso de preservativo e de várias outras formas – até mesmo da gestante para o filho, durante a gravidez. Se a pessoa tiver qualquer suspeita de contágio, deve fazer o exame imediatamente. "As novas medicações podem deter a progressão da doença, e hoje a taxa de sobrevivência é muito alta", completa o médico. Ana Clara Herval, advogada da ONG Amigos da Vida, voltada para a promoção dos direitos de portadores de HIV, destaca que o Poder Judiciário – em especial, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) – tem tido importante papel para garanti-los. "Ainda é muito comum, infelizmente, que o portador de HIV/Aids encontre amparo apenas em sede recursal e em instâncias superiores", afirma. FGTS, BCP e outros benefíciosUm exemplo foi a decisão tomada pela Primeira Turma da corte no Recurso Especial (REsp) 249.026, de relatoria do ministro José Delgado (hoje aposentado), que permitiu a uma mãe sacar o dinheiro do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para custear o tratamento de seu filho com Aids. A Caixa Econômica Federal alegou que a Lei 8.036/1990 autorizava o saque em casos de câncer, mas não mencionava a Aids. O relator afirmou que a lei deveria ser interpretada considerando a intenção do legislador de amparar o trabalhador em caso de enfermidade grave – "principalmente quando se cuida de tratamento de doença mortal, até mais do que o câncer". O julgamento ocorreu em 2000. Hoje, segundo o infectologista Bruno Mariano, a Aids "ainda é uma doença incurável, mas já controlável, garantindo qualidade de vida para os pacientes". No REsp 560.723, julgado em 2003, a Segunda Turma igualmente garantiu que uma mãe sacasse o FGTS para pagar o tratamento da filha, portadora do HIV. A relatora, ministra Eliana Calmon (hoje aposentada), mencionou precedentes que autorizavam o saque tanto do FGTS quanto do PIS nessas situações. E acrescentou que, àquela altura, a própria legislação já amparava o pedido da mãe, pois a Lei 8.036/1990 havia sido alterada em 2001 para permitir o saque do FTGS "quando o trabalhador ou qualquer de seus dependentes for portador do vírus HIV" (inciso XIII). Em 2002, no REsp 360.202, a Quinta Turma assegurou o pagamento do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para uma pessoa com Aids. O relator do recurso, ministro aposentado Gilson Dipp, observou que o laudo médico considerava a pessoa incapacitada para o trabalho, embora a declarasse apta para uma vida independente. Segundo ele, o simples fato de o doente não necessitar da ajuda de outros para se alimentar ou se vestir não podia ser impedimento para o benefício.
A tramitação prioritária de processos para pacientes com HIV foi garantida pelo Tribunal da Cidadania no REsp 1.026.899, relatado em 2008 pela ministra Nancy Andrighi. O paciente, que ajuizou ação contra a Caixa de Previdência do Banco do Brasil, pediu que o processo tivesse o mesmo tratamento prioritário que a lei assegurava aos idosos. O tribunal de origem entendeu que não seria possível estender o benefício a partir de interpretação analógica. A relatora no STJ, porém, sem a necessidade de recorrer à analogia, considerou que negar o direito de tramitação prioritária ao processo em que figura como parte uma pessoa com HIV significaria suprimir o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição. Um ano depois, a lei mudou para estender o benefício às pessoas com doença grave. Uma doença incapacitanteA Aids é considerada uma doença que incapacita. Nos Embargos de Divergência no REsp 670.744, o relator, ministro Arnaldo Esteves Lima (aposentado), decidiu uma controvérsia que envolvia julgados da Sexta e da Quinta Turmas – na época, competentes para analisar questões sobre previdência e servidores públicos – em relação à reforma de militar portador do vírus HIV. A Sexta Turma entendeu que, independentemente de ter ou não desenvolvido a Aids, o militar com o vírus teria direito à reforma com proventos no grau hierárquico superior. Para a Quinta Turma, a reforma dependeria do estágio da doença; se o militar não fosse considerado inválido para qualquer tipo de trabalho, os proventos deveriam corresponder ao grau hierárquico ocupado na ativa. Esteves Lima apontou que a Lei 7.670/1988 classificou a Aids como doença de incapacitação permanente, motivo para a aposentadoria dos servidores, conforme o artigo 186 da Lei 8.112/1990. Segundo o magistrado, a legislação não permitia distinção em relação ao estágio de desenvolvimento da Aids; além disso, havia o risco de que pessoas com esse mal desenvolvessem doenças oportunistas e fossem vítimas de preconceito. Com esse entendimento, prevaleceu a interpretação da Sexta Turma. Medo e privacidadeDesde o começo da síndrome, o preconceito e o medo afetaram pessoas contaminadas. Devido ao fato de ter sido identificada inicialmente na comunidade homossexual – lembra o médico Bruno Mariano –, a Aids chegou a ser chamada de "câncer gay". "Mas logo se descobriu que hemofílicos, usuários de drogas injetáveis e outros também estavam no grupo de risco. Hoje, considera-se que qualquer pessoa pode ser afetada", acrescenta. A privacidade dos exames para a detecção do HIV tem sido um tema muito debatido na Justiça, como apontado pela advogada Ana Clara Herval. Segundo ela, um bom exemplo dessa discussão é o REsp 1.195.995. Um cidadão entrou com pedido de indenização contra um hospital porque este, ao realizar vários exames, acabou fazendo também, por engano, o teste de HIV, que não havia sido solicitado. O resultado, positivo, foi comunicado reservadamente ao médico. No voto que prevaleceu no julgamento, o ministro Massami Uyeda (aposentado) considerou que a causa do abalo psicológico era o vírus, não a conduta do hospital. Para o magistrado, o alegado direito de a pessoa não saber que é portadora do HIV contraria o interesse coletivo, por favorecer a disseminação da doença.
No caso relatado por Massami Uyeda, o resultado do exame, embora não solicitado, estava correto. Por outro lado, o STJ tem diversas decisões concedendo reparação a pessoas diagnosticadas incorretamente. No REsp 1.291.576, um hospital foi condenado a indenizar a paciente após emitir três resultados soropositivos errados em seguida. "Nenhuma pessoa fica indiferente ou simplesmente aborrecida ao receber três vezes um resultado de exame que constata a contaminação pelo vírus HIV", comentou a relatora, ministra Nancy Andrighi. O REsp 1.071.969, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão, tratou do caso de um doador de sangue erroneamente diagnosticado como portador de HIV e hepatite B. Para o magistrado, houve falha do hemocentro por não esclarecer o doador sobre a possibilidade de um falso positivo. Para ele, não foi cumprido o artigo 6º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que exige comunicação clara e adequada sobre serviços. Em outro processo relatado também pelo ministro Salomão, o REsp 1.426.349, foi determinada a indenização para uma mãe que não amamentou o filho recém-nascido por oito dias devido a um falso positivo. A coleta de sangue para o exame confirmatório só ocorreu três dias depois do resultado do primeiro, e o resultado negativo do novo exame saiu apenas sete dias depois. "Não se revela razoável que, em uma situação de indiscutível urgência, tenha o hospital aguardado quatro dias (contado o do parto) para providenciar a coleta de nova amostra de sangue da lactante", afirmou o relator. Responsabilidade públicaA responsabilidade do poder público é outro ponto importante na discussão sobre o HIV. "O acesso a tratamentos e medicamentos pelas pessoas que vivem com HIV/Aids é uma questão de política pública, agravada pela ineficiência do Legislativo e do Executivo", salienta Ana Clara Herval. Para Bruno Mariano, um dos fatores para a rápida expansão da Aids foi a inação das autoridades. "Nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina, a doença foi tratada inicialmente como um problema apenas da comunidade gay, e o público não foi informado adequadamente", lembra ele. A falta de controle do sangue – uma obrigação das autoridades – levou à contaminação de grande número de pessoas que necessitavam de transfusões, especialmente os hemofílicos. No REsp 1.299.900, foi decidido que um paciente contaminado por HIV e hepatite C durante a transfusão deveria ser indenizado pela União e pelo Estado do Rio de Janeiro. "Reconhece-se a conduta danosa da administração pública ao não tomar as medidas cabíveis para o controle da pandemia. No início da década de 1980, já era notícia no mundo científico que a Aids poderia ser transmitida pelas transfusões de sangue. O desconhecimento acerca do vírus transmissor (HIV) não exonera o poder público de adotar medidas para mitigar os efeitos de uma pandemia ou epidemia", declarou o relator, ministro Humberto Martins. Para saber mais, acesse: |