Caminhos do júri: como o STJ interpreta o processo de julgamento popular no Brasil
![]() Silêncio na corte. Um clima de tensão toma conta do ambiente quando o réu, sob escolta, é apresentado na sala de julgamentos. Do lado de fora, a imprensa acompanha cada passo da movimentação no tribunal, em uma sessão que promete durar várias horas, talvez dias. Jurados escolhidos, defesa e acusação a postos, olhos curiosos do público: o juiz declara aberto o julgamento. Os procedimentos que envolvem os julgamentos no tribunal do júri costumam habitar o imaginário popular, tanto no Brasil quanto fora dele. Contribuem para esse fenômeno a constante representação das sessões do júri em filmes e novelas, muitas vezes em dramatizações carregadas de irreverência e exagero. Por outro lado, a própria comoção pública e a repercussão social gerada por muitos crimes dolosos contra a vida são, em si, um elemento ideal para que o julgamento popular atraia a atenção de leigos e especialistas. O sistema de julgamento popular remonta à Grécia antiga. Em Atenas, a decisão sobre crimes de sangue competia ao Areópago, órgão cujos membros eram escolhidos por sorteio entre os cidadãos atenienses. Também na Roma clássica havia a distinção em relação à natureza dos delitos. A lex licinia, legislação de 55 a.C., previa a formação por sorteio de um corpo de jurados leigos, que prestavam compromisso de bem desempenhar suas funções judiciárias no processo penal. Nascido nos sistemas antigos, o tribunal do júri evoluiu e percorreu diversos ordenamentos legais no mundo – como na Inglaterra, Alemanha e França –, chegando ao Brasil oficialmente em 1822, quando o príncipe regente D. Pedro de Alcântara, por decreto imperial, instituiu o Tribunal do Júri do Brasil. Em terras nacionais, o sistema de julgamento pelo povo foi sendo renovadamente previsto em sucessivas legislações, e atualmente tem status constitucional garantido pela Carta de 1988, com competência para o julgamento de crimes dolosos contra a vida. Mesmo assim, nos processos submetidos ao júri popular, uma série de questões ainda são controvertidas e demandam soluções pelo Judiciário, muitas delas dadas em última palavra pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Por isso, o STJ apresenta a série especial de matérias Caminhos do Júri, que neste domingo (1º) e nos dois próximos percorrerá todas as etapas do processo de julgamento perante o tribunal do júri por meio de seus diversos entendimentos sobre o tema. Fases do procedimentoApesar da associação que se faz entre o julgamento popular e a imagem do réu sentado diante dos jurados, o procedimento do júri, na verdade, começa bem antes, é complexo e se divide em duas fases: o judicium accusationis, também conhecido como sumário de culpa, e o judicium causae, ou o plenário do júri. Nessas duas fases, estão incluídos vários outros procedimentos: as intimações, o arrolamento de testemunhas, a formação do conselho de sentença, entre outros. Na primeira etapa do júri – o sumário de culpa –, é realizada a produção de provas com o objetivo de apurar a existência de crime doloso contra a vida e, pelo menos, de indícios de autoria contra o réu. Essa fase tem início com o oferecimento da denúncia ou queixa e termina com a sentença de pronúncia (que conclui pela existência do crime doloso contra a vida e de indícios de autoria, por isso, submete o processo ao júri popular), impronúncia (quando o juiz conclui que não há indícios suficientes de materialidade ou autoria aptas a levar o acusado ao júri), desclassificação do crime (casos em que o magistrado entende que se trata de outro crime, que escapa à competência do júri) ou absolvição sumária. Mera admissibilidadeNo julgamento do REsp 1.790.039, no qual a Sexta Turma discutia a submissão ao tribunal do júri de envolvidos no incêndio ocorrido na Boate Kiss, em Santa Maria (RS), o ministro relator, Rogerio Schietti Cruz, explicou que a decisão que encerra a primeira fase do procedimento do júri tem natureza de decisão interlocutória mista, não terminativa, de mero juízo de admissibilidade da acusação formulada pelo Ministério Público. "Por sua natureza e finalidade, dispensa-se, nesse momento processual, prova incontroversa da autoria do crime apurado, pois basta a existência de indícios suficientes (na dicção do artigo 413 do Código de Processo Penal – CPP) de que o acusado seja seu autor ou partícipe" – afirmou o ministro ao destacar que as questões referentes à certeza da autoria e da materialidade do delito devem ser analisadas pelo tribunal do júri, juiz natural dessas causas. No caso específico do recurso, o relator ressaltou que a questão central e mais importante dizia respeito à definição do elemento subjetivo que teria motivado a conduta dos réus, ou seja, se eles agiram no episódio com dolo eventual ou se apenas com culpa. De acordo com o ministro, com base nas informações dos autos, a afirmação segundo a qual os réus teriam agido com dolo eventual não implica dizer que eles tenham previsto a morte de 242 pessoas no incêndio e as lesões a outros 636 indivíduos, mas que estavam cientes de que, dadas as condições do local do acidente e do tipo de show – que contava com o uso de artifício pirotécnico pela banda presente na noite da tragédia –, produziram um incremento considerável do risco que os frequentadores da casa poderiam enfrentar. Para Schietti, essas circunstâncias, indicadas na sentença de pronúncia, "permitem inferir que os recorridos estavam cientes desses riscos e das possíveis consequências que poderia causar o menor incidente decorrente do uso de fogo de artifício sabidamente impróprio para ambiente interno, acionado e direcionado a material altamente inflamável, a poucos centímetros de distância da chama". Ao entender que os réus deveriam ser submetidos ao júri, Schietti também afirmou que o fato de os integrantes da banda já terem feito uso de recurso pirotécnico em outros shows, sem problemas, não poderia ser considerado um argumento válido de defesa, tendo em vista que eles sabiam plenamente dos riscos que normalmente já são inerentes a eventos realizados em ambientes fechados, escuros e sem condições adequadas de mobilidade. "Cientes de que esses riscos são já presentes, pelo simples fato de se aglutinar uma multidão em um ambiente assim, incrementaram, deliberada e conscientemente, esse risco, a ponto de ser razoável concluir, como o fizeram o juiz da pronúncia e os desembargadores que confirmavam tal decisão, que tinham ciência de que esse risco existia e que poderia vir a se concretizar com danos humanos e materiais incalculáveis", concluiu o ministro. Inquérito policialNo REsp 1.740.921, a Quinta Turma entendeu ser incabível admitir a sentença de pronúncia de um acusado com base apenas em indícios derivados do inquérito policial. O entendimento foi firmado pelo colegiado ao negar recurso do Ministério Público de Goiás, que sustentava ser possível usar as informações do inquérito como parâmetro de aferição dos indícios de autoria imprescindíveis à pronúncia, sem que isso representasse violação do artigo 155 do CPP. No processo, o Tribunal de Justiça de Goiás manteve decisão que despronunciou um réu acusado de homicídio em razão de a prova apontada nos autos ser um depoimento extrajudicial, que não foi confirmado na fase processual. Além disso, o tribunal levou em consideração a confissão espontânea de um corréu. O ministro Ribeiro Dantas, relator do recurso do MP, afirmou que a prova produzida extrajudicialmente é elemento cognitivo destituído do devido processo legal, princípio constitucional garantidor das liberdades públicas e limitador do arbítrio estatal. Segundo o ministro, com o objetivo de dar máxima efetividade ao sistema de íntima convicção dos jurados, não é possível desprezar a prova judicial colhida na fase processual do sumário do tribunal do júri. Ribeiro Dantas destacou que o juízo discricionário do conselho de sentença, uma das últimas etapas do procedimento do júri, não desmerece os elementos de prova produzidos na fase processual, tampouco os equipara à prova formada no momento do inquérito. "Na hipótese em foco, optar por solução diversa implica inverter a ordem de relevância das fases da persecução penal, conferindo maior juridicidade a um procedimento administrativo realizado sem as garantias do devido processo legal, em detrimento do processo penal, o qual é regido por princípios democráticos e por garantias fundamentais" – concluiu o ministro. Testemunha indiretaTambém analisando a fundamentação de sentença de pronúncia, a Sexta Turma, ao julgar o REsp 1.373.356, considerou que as provas produzidas no inquérito, baseadas em depoimentos de testemunhas que afirmaram "ouvir dizer" sobre o delito, não poderiam amparar a decisão que pronunciou denunciados pelo crime de homicídio qualificado. Segundo o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, além de preservar o réu contra acusações infundadas, a instrução preliminar do juízo de acusação tem o objetivo de preparar o julgamento que será realizado pelo conselho de sentença. O ministro lembrou que, ao contrário dos atos do inquérito policial, as evidências recolhidas durante a primeira fase do júri terão plena eficácia e validade perante o órgão julgador da causa, uma vez que foram produzidas na presença das partes e do juiz, pelo método do contraditório. O relator destacou que, embora não haja impedimento legal no Brasil ao depoimento de testemunha indireta, nesse tipo de testemunho por ouvir dizer (hearsay rule) – pouco confiável, "visto que os relatos se alteram quando passam de boca a boca" – o acusado não tem como refutar o que o depoente afirma sem indicar a fonte direta da informação trazida a juízo. |